Novembro de 1962. Tarde da noite. Na sala do apartamento de Jorge
Amado, em Copacabana, João Gilberto repete ao infinito
a melodia, que, associada à letra escrita pelo autor de
Dona Flor e Seus Dois Maridos, fará parte da trilha
do longa-metragem Seara Vermelha, de Alberto D'Aversa.
Jorge Amado e sua mulher, Zélia Gattai, bebem em silêncio
a poção mágica feita de voz e violão.
De repente, um canto igualmente
belo e sobre-humano ousa se intrometer. João se cala. Olha
para os donos da casa, que devolvem a interrogação.
Longos segundos de quietude. O canto misterioso faz-se outra vez
presente, imitando com perfeição a perfeição
do inventor da Bossa Nova. João fica de pé, caminha
pela sala. Busca a origem do som. Até que seu rosto se
ilumina: é um passarinho que está cantando.
"Nós tínhamos
um passarinho, um sofrê, criado solto no apartamento. Naquela
noite, ele acordou e, de tanto ouvir o João repetindo a
melodia, aprendeu e começou a cantar. Foi lindo",
lembra a escritora Zélia Gattai.
O sofrê, comprado das mãos
de um menino pobre de Copacabana pelo ator argentino Hugo del
Carril, foi deixado para sempre sob a guarda do casal. Entre outras
peripécias, já havia arrancado um lenço do
bolso do escritor português Ferreira de Castro e aterrissado
na cabeça do poeta chileno Pablo Neruda. E costumava pousar
sobre as mãos de Jorge Amado quando ele escrevia. Mas era
a primeira vez que o passarinho amarelo e preto, que muito tempo
mais tarde morreria de velhice em Salvador, cantava em dueto com
alguém. Se João gostou? Bem, 35 anos depois, ele
perguntaria: "Zélia, lembra daquele passarinho, de
olho redondinho, que uma noite cantou a minha música?"
É assim, capaz de nunca
esquecer o canto de um passarinho, o homem reverenciado pelos
mais reverenciados músicos do planeta, que ganhou quatro
Grammy _ o Oscar da música americana _ com um disco antológico
em parceria como gigante do jazz Stan Getz, e virou verbete de
enciclopédias como a americana The Grove Dictionary
of Jazz e a italiana Il Jazz.
O homem que em junho de 1958 entrou
no estúdio da Odeon para gravar um 78 rotações
por minuto que teria de um lado Chega de Saudade, de Tom
Jobim e Vinícius de Moraes, e do outro, Bim Bom,
uma de suas raríssimas composições próprias.
João Gilberto gravou com a voz em sussurro e o violão
tocado como jamais se ouvira. E quando saiu do estúdio,
a história nunca mais seria a mesma.
SER FELIZ SOZINHO
É tarde da noite. Ou então
já vai alto o dia, quem sabe? João Gilberto, que
amanhã faz 67 anos, talvez não saiba se é
dia ou noite. Tem fechadas as janelas e acesas as luzes do apartamento,
no Leblon. Provavelmente é noite, já que o homem
ao violão tem fuso horário oposto: dorme durante
o dia e encontra-se completamente desperto de madrugada. Mas às
vezes acontece de não dormir: começa, tarde da noite,
a burilar uma música que ouviu há 60 anos nos alto-falantes
de Juazeiro, no sertão da Bahia, e esquece a hora de parar
(Vai burilar essa música dias e noites a fio, mesmo que
não haja nenhuma urgência, nenhum show à vista,
nenhum disco a caminho). Assim, é possível que agora
já vá alto o dia, ainda que camuflado pela insônia,
as janelas fechadas e as luzes acesas do apartamento do Leblon.
Cabe, desde já, um esclarecimento:
há muitos anos João Gilberto não dá
entrevista (Nas poucas que deu, respondeu com monossílabos).
E não tem o costume de receber visita _ muito menos a de
desconhecidos. Portanto, que João Gilberto mora há
três anos num apartamento alugado e que este fica no Leblon,
Zona Sul do Rio, é possível dizer com razoável
margem de certeza. Mas nada mais se sabe desse apartamento: em
que rua fica? quantos quartos tem? é virado para o nascente
ou para a tardinha que cai? tem vista para o mar? da janela vê-se
o Corcovado e o Redentor? Quase ninguém tem as respostas.
Quem tem, guarda a sete chaves. Há uma espécie de
pacto de silêncio em torno do mito.
João Gilberto escolheu viver
só. Não exata e completamente só. Vive com
sua música _ até porque, entende João, sem
ela não há paz, não há beleza. Fica
dias e dias sem sair de casa. Não vai a bares, restaurantes,
cinemas, teatro, praia. Dedica boa parte das noites e madrugadas
a cantar e tocar violão.
"O João não
pára de tocar", testemunha a cantora Miúcha,
casada com ele de 1965 a 1971. "Ele pega uma música
e vai decodificando, desconstruindo e tornando a construir. O
que ele busca é a essência da música",
conta ela. Traduzindo: João repete infinitas vezes os mesmos
acordes, perdendo completamente a noção de tempo,
confundindo o dia com a noite. Insuportável de ouvir? "Não,
é lindo. Nunca é a mesma coisa. Ele sempre descobre
uma harmonia nova, que leva a outra e a outra... Cada vez que
o João toca a mesma música, é diferente",
garante a ex-mulher.
SAUDADE FEZ UM SAMBA
Mas que músicas ocupam os
dias e as noites de João Gilberto? Talvez alguma ouvida
na infância, em Juazeiro, mesmo antes de aprender a tocar
violão pelo Método Elementar Turuna. Ou alguma
outra, mais recente, que escutou nos anos 50.
E aonde vai João Gilberto
buscar a matéria-prima para esse trabalho de ourives? Na
memória, já que costuma viver basicamente duas situações:
ou não tem aparelho de som ou tem, mas não funciona.
"Ele não precisa ouvir música. É uma
discoteca mental ambulante", garante o jornalista e escritor
Ruy Castro, autor do livro Chega de Saudade, espécie
de biografia da Bossa Nova, publicado
em 1990.
Um fato em especial chamou a atenção
de Ruy Castro: "João tem na cabeça tudo o que
escutou desde que era criança até hoje. Músicas
de discos lançados há quase 50 anos e nunca mais
regravados". Com um detalhe: quando quer, João Gilberto
canta reproduzindo todas as vozes daqueles antigos conjuntos vocais,
como o Garotos da Lua, do qual participou quando se mudou de Salvador
para o Rio, em 1950, aos 19 anos de idade. "Ele canta fazendo
as vozes agudas, graves, médias. E ainda imita o som do
violão com a boca", lembra Ruy Castro. (Como se fosse
pouco, João Gilberto é capaz de trocar a voz sussurrante
de João Gilberto pelo vozeirão de Orlando Silva,
um de seus ídolos, e costuma também imitar os amigos,
na maioria das vezes sem que estes percebam).
Preciosidades resgatadas no baú
da memória, resta a João debruçar-se sobre
essas músicas, buscar-lhes a alma, encontrar a essência.
Ou a perfeição. Um trabalho infinito enquanto dura
_ e mesmo quando parece finalmente terminado. "Quando João
chega a gravar uma música, é porque já trabalhou
sobre ela durante muito tempo. Mesmo assim, só fica satisfeito
com o resultado por um breve período. Na verdade, se pudesse,
João regravaria tudo o que já gravou", arrisca
Miúcha.
Mas nem sempre João dedica-se
a resgatar músicas que a maioria dos brasileiros não
conheceria se não fosse ele. O jornalista e produtor musical
Nelson Motta, amigo há 30 anos, se lembra da emoção
de ouvir João, ao telefone, cantando e tocando Como
uma Onda, parceria de Lulu Santos com o próprio Motta.
"Ele veio com uma versão completamente diferente.
E mais bonita", reconhece.
Mas Nelson Motta guarda uma relíquia
de valor inestimável. No dia 29 de outubro de 1988, ao
chegar em casa, viu a secretária eletrônica indicando
a existência de uma mensagem. Apertou a tecla play
e _ surpresa! _ lá estava João Gilberto cantando
Parabéns pra Você. De uma forma completamente
gilbertiana, claro. E se chegou a gravar o Parabéns
pra Você, ainda que numa secretária eletrônica,
há de ter João passado noites e madrugadas em busca
da essência dessa musiquinha besta que um coro quase sempre
bêbado e desafinado insiste em entoar na mesa do botequim
ou em volta do bolo, antes do sopro.
MIL HORAS SEM FIM
João pede comida por telefone.
E ao telefone passa boa parte do tempo desperto. Liga para os
amigos e conversa horas e horas. Desenvolveu uma técnica
que lhe permite presentear os interlocutores tocando o violão
ao telefone (Ninguém sabe direito como ele consegue, já
que esse costume é muito anterior ao advento do viva-voz.
E o som chega límpido ao outro lado da linha).
"Uma vez, ele me telefonou
e nós conversamos de dez da noite às cinco da manhã",
conta o produtor musical Almir Chediak. Existe assunto para sete
horas de conversa? Existe, garante Chediak. "Conversar com
o João é um presente. Ele fala de música
com emoção, conta histórias como ninguém
e é muito criativo", elogia.
Exemplo de uma conversa com João
Gilberto? Uma vez ele manifestou a preocupação com
o destino de pequenas criaturas da noite para as quais os seres
humanos não costumam dar a mínima: "Sabe, Almir,
eu estou muito preocupado com o sofrimento dos bichinhos de luz.
Já apaguei todas as lâmpadas, para ver se eles param
de morrer. Mas mesmo assim tem um monte deles caídos aqui
no chão, sem as asinhas, coitados".
João e Almir são
amigos há dez anos. Até aí, nada demais.
O estranho é que os dois nunca se viram. (Não, não
se trata de um erro de revisão: os dois amigos NUNCA se
viram mesmo). A amizade foi sendo construída sobre intermináveis
telefonemas noite adentro. Começou quando Chediak ligou
para agradecer os alunos que João indicara para sua escola
de violão. O cantor disse, então, que tinha adorado
o Dicionário de Acordes Cifrados, manual escrito
por Chediak em 1984.
Com o passar do tempo, o amigo
telefônico recebeu uma missão de rara importância:
trocar as cordas do violão do homem que nesse instrumento,
quatro décadas atrás, inventou a célebre
batida da Bossa Nova. João acha que somente Chediak, além
de Luís Bonfá, é capaz de trocar as cordas
com perfeição tal que é possível usar
o violão logo em seguida, seja em show ou gravação.
Como João quase não
sai de casa e não é chegado a visitas, um emissário
ficou encarregado de levar e buscar o violão: Manelzinho,
ex-funcionário do apart-hotel onde o cantor morou, hoje
transformado em secretário particular.
Quando Manelzinho não podia
buscar o violão de cordas recém-trocadas, João
pedia a Chediak que fosse até o apart-hotel. Chediak ia
e cumpria à risca o ritual: fazia-se anunciar na recepção,
subia até a cobertura, dava três batidinhas na porta
do apartamento 2909, encostava o violão na parede e ia
embora. Dois minutos depois, João Gilberto abria a porta
e apanhava o instrumento.
Com o tempo, João passou
a entreabrir a porta antes que o amigo fosse embora. Mas limitava-se
a esticar o braço para fora e apanhar o violão,
sem nunca ver Chediak, que também não o via. A cada
vez, João criava uma justificativa: um dia, estava de pijama;
no outro, esquecera de fazer a barba.
Um dia, os dois combinaram um jantar,
na casa de um amigo em comum, para enfim se conhecerem. João,
claro, não apareceu para comer o peixe. Ligou no dia seguinte
informando que a caminho do jantar parara num posto de gasolina
e o frentista, que estava no seu primeiro dia de trabalho, em
vez de botar a água no radiador do Monza, botou no motor.
"E o pobre rapaz ainda dizia: Acelera, moço,
acelera que é bom. E eu acelerava", contou João
Gilberto, que aproveitou e pediu ajuda para resgatar o veículo
literalmente afogado.
Frustrado o encontro, dias depois
João telefonou novamente: "Sabe Almir, eu estava pensando:
acho que é melhor continuarmos amigos sem nos conhecermos.
Para não quebrar o encanto".
UMA NOTA SÓ
Miúcha deixa escapar, rindo:
"Tem muito folclore em torno do João. Mas na vida
real, ele é ainda mais engraçado que o folclore".
Por exemplo: nas poucas vezes em que sai de casa, João
costuma fazê-lo de madrugada. Pega o carro e sai dirigindo,
quase sempre sozinho. Vai até a praia, toma uma água
de coco, come um milho cozido, conversa com um ou outro barraqueiro
e volta para casa. Às vezes, nem chega a parar o carro.
Limita-se a dirigir. Acha que é bom motorista. Pode até
ser. Mas alguns amigos não deixaram de observar que João
tem hábitos excêntricos também ao volante:
cada curva precisa ser feita com perfeição milimétrica,
mantendo os pneus rigorosamente paralelos à curvatura do
meio-fio.
Quando morava no apart-hotel do
Leblon, por algum tempo teve como vizinho, no prédio em
frente, o amigo Nelson Motta. Nem a distância de poucos
metros animava-o a uma convivência ao vivo. João
ia para a janela e telefonava para o amigo. Este, por sua vez,
também chegava na janela. E ficavam os dois conversando
horas a horas, cara a cara, antecipando a invenção
do videofone.
Consta que há muitos e muitos
anos, João chegou em casa e descobriu que seu gato _ batizado,
aliás, com o originalíssimo nome de Gato _ havia
caído da janela (Felizmente, o dono ainda não morava
no 29° andar). Socorrido, Gato escapou, tendo gasto no incidente
não mais que uma ou duas de suas sete vidas. O fato deu
origem à seguinte interpretação: o felino,
na verdade, atirou-se pela janela, tendo cometido o tresloucado
gesto por não agüentar mais conviver com João
Gilberto tocando o dia inteiro Samba de uma Nota Só.
Em tempo: João Gilberto
detesta esta piada.
SÓ PRIVILEGIADOS
Durante 13 anos, João Gilberto
morou num apart-hotel no Leblon, nos 60 m2 de um sala-quarto-cozinha-banheiro
com vista para a lagoa Rodrigo de Freitas. O que custaria, hoje,
R$ 2.300,00 por mês (Não, João não
está pobre. Tem garantidos os dólares dos sucessos
no exterior e cobra em torno de R$ 20 mil por show. Se até
hoje não comprou casa própria é porque não
tem paciência para administrar patrimônio, aplicações
financeiras etc etc).
Alguns funcionários mais
antigos do apart-hotel orgulham-se de ter visto o ex-hóspede
mais ilustre nada menos que TRÊS vezes nesses 13 anos. Uma
façanha, se considerarmos o fato de que João Gilberto
não costumava aparecer no elevador, não passava
pela recepção, nem ficava zanzando pelos corredores.
Suas raras saídas, recordemos, aconteciam de madrugada
a bordo do carro, que aliás costumava ficar esquecido na
garagem, acumulando poeira.
Mas João reconhecia a voz
de cada um dos empregados ao telefone. Só privilegiados
com ouvidos iguais ao dele seriam capazes de comentários
do tipo, disparados na seqüência de um simples "alô"
do funcionário: "O que houve com sua voz, Adilson?
Você está gripado?"
"Seu João", como
é até hoje lembrado no Rio Flat Service, deixou
admiradores no velho endereço. "Diz aí, meu
irmão: seu João, de zero a dez?", pergunta
o mensageiro Adeilton Garcia a um colega, para testar a popularidade
de João Gilberto. "Seu João? Seu João
é dez", responde o outro, na bucha.
Seu João é dez graças
à educação e à generosidade (não
só das gorjetas). Chegou a telefonar para amigos e amigos
de amigos médicos, na tentativa de conseguir consultas
e até cirurgias de graça para os funcionários
do apart-hotel.
"Lembra dele cantando? Aquela
vozinha mansa? Pois é: ele falava com a gente com a mesma
voz. E se hoje eu tenho o meu carro é graças às
gorjetas do seu João", agradece Adeilton, feliz proprietário
de um Escort 84.
Entre outras missões, o
mensageiro comprava para seu João desde sushi no aristocrático
Cesar Park até pão com manteiga na Real, a padaria
da esquina. Adeilton se lembra de que uma vez na vida foi até
convidado a entrar no inexpugnável apartamento 2909, graça
alcançada por raríssimos seres humanos. "Ele
me ofereceu café com leite. Nunca vou esquecer, porque
sei que pouca gente teve essa honra", orgulha-se o mensageiro,
que adora pagode, nunca viu show de João Gilberto, nem
tem um único disco de Bossa Nova. Mas, relembrando e homenageando
seu João, Adeilton cantarola baixinho, quase num sussurro:
"Vou te contar... Meus olhos já não podem ver"...
ONDE ANDA VOCÊ
João Gilberto costuma deixar
a televisão permanentemente ligada. Mas quase sempre sem
som. Vê com especial atenção os jogos de futebol
e, pasmem, as lutas de boxe. João é tricolor, mas
ama a Seleção Brasileira e o futebol em geral (O
último show em Brasília, em 1995, na Villa-Lobos,
começou com duas horas de atraso, simplesmente porque João
Gilberto preferiu ficar no quarto do Kubitschek Plaza vendo o
primeiro jogo da decisão do Brasileiro, entre Botafogo
e Santos).
Quanto ao boxe, não é
a potência dos socos que deixa João de olhos fixos
na tela. "Ele ama a musicalidade, o ritmo do boxe. Gosta
como os lutadores preenchem os espaços vazios _ como se
eles fossem uma música, na qual cada som vai se encaixando
no outro que vem em seguida", analisa o cineasta Walter Salles,
diretor de Central do Brasil, que assistiu a algumas lutas
em companhia de João, no apart-hotel do Leblon.
Salles dirigiu, em 1993, o comercial
de João Gilberto para a cerveja Brahma (Logo João,
que não bebe). E durante os meses seguintes, freqüentou
cinco ou seis vezes o apart-hotel, sempre tarde da noite, acalentando
o sonho de rodar um documentário em longa-metragem contando
a trajetória do cantor, desde os tempos de Juazeiro.
Salles chegou a filmar algumas
cenas de João Gilberto cantando em estúdio. "Mas
logo ficou claro que o local não reunia as condições
técnicas adequadas para o que o João queria: encontrar
o som. E a busca da perfeição não tem
limites", reconhece.
O longa-metragem acabou abortado,
mas para o cineasta ficou daquele tempo o prazer de conversar
com João, de vê-lo cantando e tocando na sua busca
ilimitada. E de comer os pastéis que João Gilberto
mandava buscar, desde o dia em que descobriu que o novo amigo
adorava pastéis.
Em retribuição, Walter
Salles tem na gaveta uma fita VHS com o documentário Quando
Éramos Reis, de Leon Gast, que conta a célebre
decisão do título dos pesos-pesados de 1974, entre
Mohammad Ali e George Foreman, no Zaire. Se ainda não a
entregou é porque não tem ninguém que lhe
diga onde, diabos, João Gilberto está morando.
COISAS QUE SÓ O CORAÇÃO
João adora cantar e tocar
para os amigos. Houve um tempo, nos anos 70, em que passava as
noites em jam sessions intermináveis com a turma
dos Novos Baianos. Ao fim de uma dessas noitadas, as duas gerações
de baianos saíram caminhando pelas ruas da cidade. Já
amanhecia quando João avistou uma mulata descendo o morro
para o trabalho. E exclamou: "Olha lá o Brasil descendo
a ladeira!" Moraes Moreira pegou o mote e o transformou num
de seus maiores sucessos: "Quem desce do morro, não
morre no asfalto / Lá vem o Brasil descendo a ladeira"...
Mas antes de sair para tocar na
casa de algum amigo, João sempre perguntava quantas e quais
pessoas estariam lá. "Se ele chegava e encontrava
mais gente que o combinado, dizia: Só vim para dizer
que não venho. E ia embora", lembra Nelson Motta.
"João é extremamente tímido. Tem vergonha
até de sair na rua. Imagina o sofrimento de uma pessoa
assim, tendo que ganhar a vida num palco", lembra Miúcha.
Tímido sim, mas um mestre
na arte de conquistar amigos e conseguir deles o que deseja _
desde a troca da bateria do carro que não usa até
consultas médicas de graça para quem precisa.
"Ele consegue coisas inenarráveis.
Já viajou dos Estados Unidos para a Holanda sem passaporte.
E morou vinte anos nos Estados Unidos sem nunca ter aprendido
inglês. Em compensação, o que tinha de músico
americano estudando português para poder se comunicar com
o João...", conta a ex-mulher.
A timidez de João Gilberto
é tamanha que antes de se casar com Miúcha, telefonou
para Jorge Amado e pediu ao amigo que fizesse a ponte com o pai
da moça, Sérgio Buarque de Holanda. "Jorge,
liga para o Sérgio e diz que eu não sou tão
ruim como dizem. Dê boas informações a meu
respeito". Jorge Amado telefonou. Se deu certo, não
se sabe. Mas João casou-se com a filha de Sérgio
Buarque de Holanda.
Jorge Amado e Zélia Gattai
tiveram participação destacada também no
primeiro casamento de João, com Astrud. João pediu
a Jorge que telefonasse para o dono do cartório em Copacabana,
o escritor Anibal Machado, e conseguisse que seu casamento fosse
o primeiro, ao meio-dia. "Eu não vou me sentir bem
esperando naquela fila enorme para casar", justificou. João
conseguiu o primeiro lugar na fila. Mas às vésperas
do casamento, passou a ligar todos os dias para Zélia,
sempre com a mesma pergunta: "Zélia, o Jorge vai ao
meu casamento? Você tem certeza?"
No dia marcado, Jorge e Zélia
chegaram ao cartório ligeiramente atrasados, às
12h05. Encontraram o noivo nervoso na porta. "Ah, que bom,
agora eu posso me casar", comentou João. "Por
quê?", estranhou Jorge Amado. "Ora, porque vocês
são os meus padrinhos".
O papel de Jorge e Zélia
ainda não estava terminado. Finda a cerimônia, João
procurou a amiga para um último pedido: "Zélia,
o Vinícius (de Moraes) não veio. Mas eu tenho
certeza que é porque ele foi dormir muito tarde, coitado.
Então, quando der três horas, telefona e diz para
ele não ficar com remorso, porque remorso é a pior
coisa do mundo".
Às três horas da tarde,
Zélia ligou para Vinícius, que acabara de acordar.
"Ai, Zélia! Fui dormir tarde e perdi o casamento do
João. Tô morrendo de remorso...", lamentou o
poeta.
Não sabia Vinícius
que João já o perdoara por antecipação.
Coisas que só o coração pode entender.
MELHOR DO QUE O SILÊNCIO
É tarde da noite. Ou já
vai alto o dia, quem sabe? João Gilberto tem fechadas as
janelas e acesas as luzes do apartamento, no Leblon. Com a voz
e o violão, busca o mais que perfeito. Se tiver em casa
um disco chamado Livro, e desde que o aparelho de som funcione,
pode até descansar um pouco escutando a música Pra
Ninguém, de Caetano Veloso (autor de Sampa,
que João transformou em obra ainda mais prima).
Na mais bela faixa do CD, Caetano
lista belezas quase indescritíveis, como Tim Maia cantando
Arrastão, Djavam cantando Drão e Elis
Regina cantando Como Nossos Pais. E conclui: "Melhor
do que isso só mesmo o silêncio / E melhor do que
o silêncio só João".
Talvez melhor do que tudo isso
só João rompendo o silêncio, cantando em dueto
com um passarinho atrevido de olho redondinho _ o único
ser vivo que, um dia,ousou cantar tão bonito quanto João
Gilberto.